terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A evolução da busca pessoal e o reconhecimento dos Direitos Humanos


O primeiro relato da realização de uma legítima busca pessoal, durante uma abordagem policial, encontra-se no Livro do Gênesis, parte III, “A História de José”, da Bíblia Sagrada.
José, que ocupava um dos mais altos postos da hierarquia do Egito e ainda não havia revelado sua identidade aos irmãos que vieram buscar trigo, determinou ao oficial intendente que no deslocamento da volta procedesse à busca em seus irmãos, particularmente nos seus sacos de viagem. José sabia que seria encontrada no saco de viagem transportado por Benjamim - o mais novo - uma taça de prata, pois a havia ali ocultado, a fim de observar as reações dos irmãos depois que o valioso objeto fosse descoberto durante a busca.
Ao serem abordados, os irmãos negaram a prática de furto e não ofereceram resistência à revista. O intendente, então, lhes proferiu algumas palavras e procedeu à busca, conforme segue: “Seja como dissestes! Aquele com quem for encontrada a taça será meu escravo. Vós outros sereis livres’. E, imediatamente, pôs cada um o seu saco por terra e o abriu. O intendente revistou-os começando pelo mais velho e acabando pelo mais novo; e a taça foi encontrada no saco de Benjamim” (Livro do Gênesis, parte III, Capítulo 44, versículos 10-12).
Trata-se de um raro relato, pois, desde a Antiguidade, a busca pessoal acompanhava usualmente o procedimento da busca domiciliar como sua consequência, em razão de que não faria sentido revistar tão-somente uma pessoa e, não se encontrando o que era procurado, desistir da diligência. Isso porque a ocultação do objeto buscado já poderia ter sido realizada no interior da casa daquele sobre quem recaia a suspeita da subtração mediante furto, por exemplo.
No caso do referido texto bíblico, como situação excepcional, havia a certeza de que o objeto procurado - a taça - não estaria na casa dos irmãos de José, pois, naquela ocasião, eles se encontravam em viagem para trazer trigo do Egito e longe de seus domicílios, motivo pelo qual foi realizada exclusivamente a busca pessoal.
A busca domiciliar era o procedimento utilizado, em regra, para que fosse verificado se alguém ocultava consigo o que se suspeitava ter sido indevidamente retirado de outra pessoa. Por sinal, não é exagero afirmar que no antigo direito romano dispensava-se maior proteção à casa do que ao próprio corpo do indivíduo. A casa era o símbolo da identidade da pessoa, do grupo familiar liderado pela figura do paterfamilias e também era o ambiente do culto sagrado dos antepassados, dos mortos que recebiam na cerimônia do “fogo sagrado” - chamado “lar” - a oferenda doméstica como garantia de sua memória e do seu descanso eterno (COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Tradução: Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 32)..
Em contraposição a essa sacralização do ambiente do lar - entenda-se interior da casa - e o respeito à propriedade que identificava o grupo familiar, o corpo do cidadão, em sua individualidade, não era considerado de igual importância, tanto que no antigo direito romano o corpo do devedor respondia pela sua dívida. Tal situação ilustra bem a condição de menor respeito à intimidade representada pelo corpo em relação a casa e a propriedade familiar, como explica ainda Fustel de Coulanges: “A lei das Doze Tábuas não poupa, seguramente, o devedor, mas recusa, no entanto, que a sua propriedade seja confiscada em proveito do credor. O corpo do homem responde pela dívida, não a sua terra, porque esta se prende, inseparável, à família. Será mais fácil colocar o homem na servidão do que tirar-lhe um direito de propriedade pertencente mais à família do que a ele próprio; o devedor está nas mãos do seu credor; a sua terra, sob qualquer forma, acompanha-o na escravidão” (p. 32). Também no direito romano cabia ao lesado a iniciativa para a apuração e punição dos delitos privados, incluindo-se as subtrações indevidas. Nesse contexto, a busca domiciliar foi praticamente regulamentada na Lei das XII Tábuas, quando estabeleceu que a diligência devia ser realizada pelo interessado, em ato solene, ingressando nu na casa de quem recaía a suspeita, apenas protegido por um cinto, em respeito ao pudor alheio, e portando nas mãos um prato para nele colocar o objeto encontrado e também para demonstrar que em suas mãos nada mais trazia (Tábua VIII, “Dos Delitos”, Número XV - MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995).
A busca pessoal seria então realizada como conseqüência do ato solene de entrada na casa, respeitado o ritual que a condicionava, no caso dos delitos privados, já que o corpo recebia menor proteção que a casa, conforme se demonstrou, ou ainda mediante consentimento daquele sobre quem pesava a suspeita. Quanto aos delitos que lesavam a coletividade, perseguidos pelo poder público - delitos públicos -, dava-se a busca tanto na esfera domiciliar quanto pessoal em conjunto e, de modo geral, por imposição de autoridade constituída.
Quanto à busca pessoal preventiva para acesso a ambiente restrito, existe relato, também da Antiguidade, que demonstra a associação do procedimento a algo desagradável e ainda assim imposto e aceito, no caso para a entrada no palácio de um rei, conforme o discurso Panegírico de Isócrates, publicado na Grécia em 380 a.C. para ser divulgado no período das Olimpíadas, em Olímpia precisamente, fazendo elogio aos helenos em relação aos bárbaros da Ásia, povos governados por persas, ‘em que apenas um tem todo o poder’: “Estes ‘mergulham’ no luxo como consequência de sua riqueza, têm a alma humilhada e assombrada pela monarquia, se deixam revistar à porta do palácio, se prostram diante do rei, sofrem todo tipo de humilhação adorando um mortal que chamam de deus, mas se preocupando menos com sua divindade do que com as honras... (ISÓCRATES, Discurso panegírico in Isocrate - Discours, Tome II, Texte établi et traduit par Georges Mathieu et Émile Brémond, Les Belles Lettres, Paris, 2003, p. 53. Citação de fragmento do texto em francês - escrito originalmente em grego -, traduzido para o português).
Retornando à questão da busca processual, já na Idade Média com a predominância do processo penal canônico, verificou-se uma transformação do sistema acusatório para o inquisitivo e, a partir desse momento, deixaram de ser observadas quaisquer prerrogativas individuais. Como ensina Tourinho Filho: “Até o século XII, o processo era de tipo acusatório: não havia juízo sem acusação. O acusador devia apresentar aos Bispos, Arcebispos ou Oficiais encarregados de exercerem a função jurisdicional a acusação por escrito e oferecer as respectivas provas. Punia-se a calúnia. Não se podia processar o acusado ausente. Do século XIII em diante, desprezou-se o sistema acusatório, estabelecendo-se o ‘inquisitivo’. Muito embora Inocêncio III houvesse consagrado o princípio de que Tribus modis processi possit: per accusationem, per denuntiationem et per inquisitionem, o certo é que somente as denúncias anônimas e a inquisição se generalizaram, culminando o processo inquisitivo, per inquisitionem, em tornar-se comum” (Processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 3. p. 34).
Ainda que partindo de “denúncia” anônima, a inquisição apresentava uma implacável busca à condenação do chamado “herege”, sem o mínimo respeito à integridade física e psíquica do “acusado”, pois se utilizava inclusive do expediente da tortura para obtenção da confissão. No curso dessa “busca de condenação”, a busca domiciliar e a pessoal não eram condicionadas à qualquer justificativa a partir da conclusão da rápida instrução preparatória, mesmo sem a presença do 'acusado': “O processo inquisitório surgiu com o Concílio de Latrão, em 1215, e possibilitava o procedimento de ofício, sem necessidade de prévia acusação, pública ou privada. O termo inquisição vem do latim inquirere, inquirir. Compõe-se de duas outras palavras latinas: in (em), e quaero (buscar). Portanto, a inquisição é uma busca, uma investigação (...) Se a instrução preparatória fornecia a prova do delito, os inquisidores ordenavam a prisão do acusado, ao qual já não protegiam nem privilégios nem asilo. Depois de preso, ninguém mais se comunicava com ele; procedia-se à visita do seu domicílio e fazia-se o seqüestro de seus bens” (SILVA, José Geraldo da. O inquérito policial e a polícia judiciária. 2. ed. São Paulo: Leud. 1996. p. 31).
Exemplo desse proceder foi descrito pelo historiador Carlo Ginzburg, na pesquisa que reconstituiu o processo a que respondeu o moleiro Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, de Montereale, a partir de denúncia ao Santo Ofício, em 1583, depois de ter pronunciado palavras consideradas “heréticas e totalmente ímpias”, em região identificada ao norte da atual Itália: “No momento da prisão, o vigário-geral mandou que revistassem sua casa”. Já ao final de um segundo “processo”, em torno de 1601, antes da execução de sua morte na fogueira, “todos os seus livros e ‘escritos’ foram confiscados” (O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 67 e 191).
Superada essa difícil fase, iniciou-se a Idade Moderna caracterizada pelo absolutismo que foi o sistema de governo da maioria dos Estados europeus entre os séculos XVII e XVIII, quando o poder era exercido de modo centralizado pelo monarca e sustentado por uma burguesia emergente. E foi somente no século XVIII que surgiu um período de luzes, com um movimento de defesa do predomínio da razão sobre a fé, estabelecendo o progresso como destino da humanidade: o Iluminismo.
Representando a visão intelectual da época, essa corrente alcançou grande repercussão na França, onde enfim se opõe às injustiças sociais, aos privilégios da aristocracia decadente e também à intolerância religiosa. Também, abriu caminho para a Revolução Francesa que veio a se inflamar em 1789 e marcou o início da Idade Contemporânea, oferecendo-lhe o lema que sintetizou a mudança então clamada: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.
Um dos principais idealizadores desse pensamento foi Jean-Jacques Rousseau, que defendeu o respeito à igualdade, no exercício dos direitos individuais, reconhecendo a existência de um verdadeiro “contrato social” que estabelece que cada cidadão abre mão de uma pequena parcela da sua liberdade individual, a fim de que o Estado, representando a vontade geral em seus atos de controle, viabilize a convivência pacífica, com base no exercício da liberdade civil e respeito à propriedade. Em sua obra máxima, de 1762, “O Contrato Social”, oferece lições precisas desse novo pensamento: “Limitemos tudo isso a termos fáceis de comparar. O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que lhe diz respeito e pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui... De qualquer modo que remontemos ao começo, chegaremos sempre à mesma conclusão, a saber: que o pacto social estabelece entre os cidadãos tal igualdade, que todos se obrigam sob as mesmas condições e devem gozar dos mesmos direitos. Assim, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente a todos os cidadãos” (O contrato social: princípios de direito político. Tradução: Antônio de P. Machado. São Paulo: Tecnoprint, 1995. p. 39).
Influenciado pelos escritores dessa época, Cesare Beccaria, lança em 1764 a sua obra: “Dos delitos e das penas”, proclamando o princípio da igualdade perante a lei, com enfoque na norma penal. O autor estabelece limites entre a justiça humana e a justiça divina, ou seja, entre o pecado e o crime; condena a reivindicação do direito de vingança, com o fortalecimento do jus puniendi, baseado na sua utilidade social, além da devida proporcionalidade entre o delito e a sanção e tantas outras idéias que vieram a fortalecer o sentido de justiça aplicada ao indivíduo como sujeito de direitos inalienáveis, inserido no contexto de uma sociedade organizada e equilibrada mediante o respeito às regras de convivência derivadas do contrato social.
Beccaria tece críticas ao sistema que não acolhia a pretensão ou garantia de respeito ao acusado ou suspeito, indagando: “Quem, ao ler a história, não se horripila diante dos bárbaros e inúteis tormentos, friamente criados e executados, por homens que se diziam sábios? Quem não estremecerá, até em sua célula mais sensível, ao ver milhares de infelizes que a miséria provocada ou tolerada por leis que sempre favoreceram a minoria e prejudicaram a maioria, forçou a desesperado regresso ao primitivo estado da natureza, ou acusados de delitos impossíveis, criados pela tímida ignorância, ou réus julgados culpados apenas pela fidelidade aos próprios princípios, esses infelizes acabam mutilados por lentas torturas e premeditadas formalidades, oriundas de homens dotados dos mesmos sentimentos e, por conseguinte, das mesmas paixões, em alegre espetáculo para a fanática multidão?” (Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 1997. p. 89).
Verifica-se, a partir de então, uma evolução acentuada quanto ao reconhecimento dos direitos e garantias individuais, mediante o respeito ao ser individual e o desenvolvimento de um novo conceito: o da inviolabilidade pessoal, com base no aspecto físico, que diz respeito à intangibilidade corporal e também no aspecto moral, quanto à preservação da intimidade e da vida privada.
A noção do que sejam os “direitos humanos” surge inicialmente permeada pela ideia de direito natural, ou seja, os que podem ser deduzidos da própria natureza do ser humano. Nesse sentido, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, relaciona como direitos naturais e inalienáveis, dentre outros, a liberdade, a propriedade, a resistência à opressão e a segurança. Importante notar que, dentre os dezessete artigos dessa histórica Declaração votada e aprovada no mês seguinte à Tomada da Bastilha, respectivamente nos dias 20 e 26 de agosto, e tendo por redatores principais Mirabeau e Sieyès, se encontra uma previsão muito especial para a sustentação da garantia dos direitos do homem e do cidadão: a necessidade da criação de uma chamada “força pública” (force publique), que foi incluída em seu artigo 12 (TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos, in Grupo de Trabalho de Direitos Humanos. Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 2000).
Ainda, a oposição dos direitos individuais frente a atuação do Estado, até então absoluto, passa a representar um fator de sua limitação, como observou Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, ao tratar da evolução dos instrumentos internacionais de proteção aos indivíduos: “Na era moderna, grande parte das normas contidas nas Declarações de Direitos dizem exatamente com os limites da atuação do Estado na invasão da esfera de liberdade dos indivíduos. E essa invasão se torna mais sensível quando o Estado exerce seu poder-dever de repressão a condutas que atingem a comunidade” (A Convenção Americana sobre direitos humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: RT, 2000. p. 23).
Segue-se, então, a internacionalização das normas de proteção aos direitos individuais em oposição ao poder do Estado, em curso de evolução que se interrompeu a partir do início da I Grande Guerra Mundial e foi retomado em 1919, com o Tratado de Versalhes que estabeleceu a Liga das Nações e a Corte Permanente de Justiça, como registra a mesma autora: “Não há dúvidas de que o Tratado de Versalhes, ao criar o primeiro corpo de organizações internacionais permanentes para regulamentação e controle das relações entre os Estados, e entre o Estados e os indivíduos, em tempo de paz, pode ser considerado um grande passo na internacionalização dos direitos humanos” (Idem, Op. cit.,p. 32).
Após a segunda Grande Guerra, iniciou-se um processo de submissão das nações a compromissos de proteção e garantia dos direitos da pessoa, como decorrência do fim do conflito mundial. Surge, inicialmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que traz como princípios gerais a liberdade, a igualdade, a não discriminação e a fraternidade, além de prescrições sobre os direitos e liberdades de ordem pessoal, sobre direitos do indivíduo nas suas relações sociais, dentre outras.
Tal Declaração motivou a elaboração de outros instrumentos internacionais aos quais se vincularam nações não integrantes das Nações Unidas, hoje de grande influência no ordenamento jurídico dos países a eles submetidos.
Finalizando essa breve digressão, grande parte dos ordenamentos jurídicos dos países da comunidade internacional identifica a separação da busca pessoal em relação à busca domiciliar, reconhecendo a intervenção policial como de iniciativa própria, na condição de medida necessária, sempre em equilíbrio com os direitos e garantias individuais. Esses direitos inalienáveis encontram-se estabelecidos na Constituição Federal, no caso do Brasil e de vários outros países, como conseqüência da evolução histórica de sua própria organização social e a recepção de normas que devem ser consideradas pelo seu valor universal. Verifica-se, na mesma trilha, o posicionamento do Estado como exclusivo detentor do jus puniendi, o reconhecimento da igualdade de todos perante a lei, a atuação legítima da Força Pública e, também, o desenvolvimento da noção de inviolabilidade pessoal ao longo dos tempos, observada a sua relatividade.

Autor: Adilson Luís Franco Nassaro
O texto acima é um dos itens do artigo completo "Abordagem policial: busca pessoal e direitos humanos", publicado na revista “Jus Navigandi”, ano 16, n. 2760, em 2011, ISSN 1518-4862. Disponível em http://jus.uol.com.br/revista/texto/18314
(Autorizada a divulgação, sempre com citação de fonte e autoria).